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Lembro-me de ter tido uma infância traquina. Nunca tive irmãos ou amigos, então, deixava tudo a cargo da minha imaginação. Assim, minha vida foi sempre cheia de bruxos malvados, belas princesas, dragões assustadores e castelos incríveis. Quando eu me sentia sozinho, subia até o topo da primeira árvore que encontrava. Lá de cima eu podia conversar com as nuvens, tão solitárias na imensidão azul do céu.
Em uma dessas escaladas, me deparei com um estranho ninho escondido entre as folhas de um galho. Não havia pássaros por perto, apenas um pequeno ovo entre os gravetos do ninho. Nunca acreditei em destino, mas, por coincidência, ao me aproximar do ovo, ele começou a rachar.
Algo dentro dele estava se mexendo, fazendo força para quebrar a fina casca que o mantinha prisioneiro. Continuei observando. Em pouco tempo, já conseguia ver um bico. O ovo foi quebrando, e para a minha surpresa, uma cabeça de serpente projetou-se para fora. A casca enfim se rompe, libertando aquela pequena criatura com o corpo de pássaro, unida pela cauda à um corpo de serpente.
Uma criança imaginativa como eu não tinha a intenção de questionar impossibilidades genéticas como essa. Assim, o levei para casa e criei. Crescemos juntos e nos tornamos melhores amigos. Contudo, havia um problema, meu melhor amigo possuía duas faces distintas. Eram duas personalidades diferentes em um único ser. Às vezes, uma sobrepujava a outra. Sua metade pássaro era compreensiva e camarada, enquanto sua metade cobra era sádica e maldosa.
Certa vez, recordo-me, acordei no meio da noite por causa do canto estridente do pássaro. Ao que parece, a cobra preparava-se para dar um bote em mim enquanto estava dormindo. O pássaro tentava me alertar. Mesmo diante disso, não pude me separar dele, afinal, éramos amigos.
As noites se passaram e a situação voltou a se repetir. A serpente preparava-se para me atacar e o pássaro me alertava. Perguntava-me como um corpo podia abrigar personalidades tão opostas. Como ele podia ser meu amigo por um lado e por outro, tentar me atingir? Houve uma noite em que o pássaro não cantou, consequentemente, só acordei na outra manhã.
Ao encontrá-los, meus olhos arregalaram-se. A cobra havia devorado o pássaro, sua outra metade, sua outra face, sua outra personalidade. Sem condições de sobreviver, a cobra acabou morrendo na posição do oroboros, a serpente que devora a própria cauda.
Acho que sempre soube que aquilo iria acontecer. Mais cedo ou mais tarde, uma de suas faces iria destruir a outra. No fim das contas, o que eu nunca descobri foi se meu amigo era um pássaro com um lado cobra, ou uma cobra com um lado pássaro.
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Thiago Ramos
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