Encravadas no meu braço, as garras do homem sem sombra arranhavam-no, enquanto eu me contorcia para fugir. O medo parecia paralisar minhas pernas, eu comecei a me sentir fraco. O hálito forte e quente entorpecia meus sentidos e já não mais conseguia distinguir a realidade dos fatos. Encoberto por uma capa escura que escondia parte de seu rosto, foi aos poucos me consumindo. Minhas forças, minhas lembranças, meu eu... já nem me lembrava.
Antes das lembranças serem consumidas pelo medo, eu recordava dos meus amigos e dos momentos que passávamos sob a copa do meu ipê. Escutava o riso de cada um quando eu, sem querer, cometia uma de minhas terríveis gafes ou quando alguém demorava a entender o que todos entendiam de imediato. Tudo parecia tão distante: os risos, os sentimentos. As lágrimas corriam secas através das ondulações do meu rosto e caiam sofridas sobre as folhas velhas que sustentavam os meus pés. Minhas mãos estremeciam ao lutar contra as garras deste monstro que me puxava com força, era como se ele não se cansasse; eu, pelo contrário, não tinha mais um grama de força.
Vozes distantes foram ecoando na minha cabeça, contudo não conseguia distinguir se as conhecia ou se eram delírios da minha mente. Estava esquecendo tudo. Numa gradação aterrorizante e consciente, os principais acontecimentos de minha história foram sendo varridos.
Os ataques sucessivos daquele monstro, não cessavam. Seus golpes pesavam sobre o meu corpo e seus violentos gritos de dor estremeciam minha alma e me desarmavam por completo. Como se me conhecesse há muito, golpeava-me consecutivamente no mesmo ponto, no meu calcanhar de Aquiles.
Com o tempo, anestesiado, assistia, como um espectador, o show brutal de tortura e perversidade humana. Entretanto, diferente da vida real, o espectador era o alvo destes acontecimentos. As lágrimas se encontravam perdidas dentro de mim, não encontravam a saída e entalavam minha garganta, impedindo a minha voz de gritar em meu socorro.
Inundado por dor, medo, tristeza, solidão; entreguei-me para o sacrifício. As últimas reservas energéticas do meu corpo foram consumidas e, para mim, só restava receber o golpe final, o golpe de misericórdia; se é que depois de tudo ainda merecia.
Tentei manter vivas as lembranças que ainda me restavam, mas nada adiantou, fui esquecendo tudo, pouco a pouco...
Quando a derradeira gota das minhas memórias foi consumida, fui largado no chão como um corpo indigente sem ter ninguém a minha espera e sem ter quem vele minha passagem ao outro mundo. Simplesmente esqueci, foi tão simples que, sem perceber, não lembrava de coisa alguma que havia acontecido. Não sei se sentia alívio por não ter mais este peso sobre minhas costas ou se remorso de ter esquecido a parte mais significativa de tudo o que sou e que construí.
A vida corria mansa entre meus dedos, não tinha forças para agarrá-la. Senti seu corpo escorregadio, pontiagudo e tênue friccionando firmemente sobre a palma da minha mão à medida que fugia sorrateiramente de mim. Eu era apenas um observador passivo deste sofrido momento em que a vida me abandonava. Que ela era passageira eu já sabia, mas não sabia que seria tão sofrida essa passagem. Senti-me pesado, mesmo quando minha alma levantava vôo. Algo me puxava, ou seria eu que não podia com o próprio peso da minha alma?
Do alto, observava aqueles que deixei para trás. Regava-os com as gotas da minha vida ou da minha pós-vida. Eu subia, subia, subia... Não fazia idéia para onde estava indo, mas seguia a luz que cegava os meus olhos. Algo me dizia que não era para ali que devia ir, mas insisti assim mesmo. Até que uma voz imperativa ecoou em sonoridade média, e eu despertei aliviado. Dei um grande suspiro enchendo meus pulmões de vida e espreguicei testando os movimentos do meu corpo. Os olhos fechados criavam coragem para olhar o que estava diante deles. Estava com medo, porém estava feliz, já que não passava de um surto do espectro da minha consciência – disso eu tinha certeza. – Nada mais poderia ser feito o passado que outrora vivemos se infeliz, não há como corrigir. Entretanto, quando as recordações estendem um sorriso, mesmo que disfarçado em nosso rosto, temos a certeza de que o passado valeu a pena, ainda que tenham deixado um coração dilacerado e as lágrimas de sangue como cicatrizes eternas na memória.
Tallys Eethan
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